Manancial

Subo no ônibus, as lágrimas irrompendo de meus olhos inchados de sono. Não há ninguém de quem me despedir. Me sento à janela e tomo um gole d’água – é de manhã e a chuva da noite anterior deixou um frescor agradável com sabor de domingo. Choro, desesperada, só, e a música no meu fone de ouvido me provoca espasmos de dor. Ajeito a cadeira, abro a janela (escolhi este ônibus pra sentir o vento no rosto), me esparramo, derrotada. Depois de rodar por alguns minutos, o ônibus para pra recolher passageiros na beira da estrada. A interrupção do movimento faz com que eu pare de chorar.

A luz das 8 horas da manhã revela a superfície das plantas com um brilho incrível. A claridade consegue me acalmar e me concentro no verde de uma paisagem pouco violada. Pontos de cor florescem de tempos em tempos na multidão de folhagens. Alguns arbustos de tons terrosos quebram a sinfonia monótona do mundo lá fora, a natureza é muito linda.

Recupero os acontecimentos da noite anterior. Devo ter chegado no hotel por volta de duas e qualquer coisa da manhã. Tínhamos ido levar a Ulhoa (não consigo me lembrar de seu primeiro nome) ao seu hotel. Sou interrompida pela brincadeira sapeca da menina na poltrona da frente. Ela dá um gritinho e o topo de sua cabeça salta visível, os olhos ansiosos por alguma reação minha. Sinto muito, garota. Sua cabecinha cacheada aparece mais uma, duas, três vezes até que a mãe lhe dá uma bronca. Respondi todos os olhares frenéticos com piscadelas longas de reconhecimento. Talvez um dia ela se lembre desse dia e compreenda que eu a estava vendo e sentindo.

Mudo de ideia, não quero falar sobre os acontecimentos da noite. Fernando me vem à cabeça. O conheci duas ou três semanas atrás, ele estava pedindo dinheiro. Eu não tinha nenhum, mas eu e meus amigos o convidamos pra se sentar conosco e comer alguma coisa. Fernando veio de algum lugar na Bahia com a esposa e a filhota (que fez um ano mês passado) e estava morando numa invasão na beira de uma das vias principais do plano piloto. Seus olhos amedrontados pareceram brilhar com nossas perguntas. O que ele achava daqui, quantos anos tinha. Fernando tinha 22 anos, e achava Brasília “tranquilo”. Ele tinha medo de morar onde arranjara o barracão, tinha muito mato e gente esquisita. Seu acarajé chegou e nós zarpamos, confusos quanto ao que sentir. Dia desses, encontrei Fernando de novo. Ele não me reconheceu, mas fiquei satisfeita de ver que estava agasalhado e conseguia manter a doçura mesmo catando latinhas de alumínio às 3 da manhã de um sábado. Dei a ele o dinheiro que tinha: por pouco que seja, uma criança ia comer na manhã seguinte.

Paramos em alguma cidade próxima à Pirenópolis para aguardar novos passageiros. O ônibus têm eu e mais 3 ou 4 pessoas que permanecem do início ao fim. Durante todo o trajeto, outras sobem e descem num fluxo descontínuo, peixes embarcando na correnteza de um vasto manancial.

Durmo um par de horas e acordo grogue, os olhos pesados, a bexiga apertada. Estamos no entorno de Brasília e vejo que recebi várias mensagens. A sensação de choro e solidão passa tão logo faço novos planos pro dia. Desço em Taguatinga pra aliviar a bexiga e percebo como a cidade continua, e as pessoas continuam, e a vida continua. Sempre.

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