De Madrugada

Ao abrir a minúscula janela da cozinha, Madrugada vislumbrou o asfalto molhado e fechou os olhos para sentir a brisa fresca da manhã depois de uma noite inteira de chuva. Ela tinha passado por uma tempestade também e temia a calmaria do dia pálido. Era possível que a qualquer momento um pensamento ruim passasse de relance e isso seria o suficiente para que o turbilhão de emoções emergisse e levasse embora a calmaria e o frescor de um dia novo que apenas começava a existir para ela. Um banho quente lhe restaurou um pouco de conforto apesar do mal-estar geral que sentia. Talvez estivesse resfriada, mas não era o momento certo para sucumbir também neste ponto. A sensação geral de tudo que ela fazia era a de um sonho do qual não se pode acordar, de uma realidade que ficou distante demais para ser crível, e por isso nem chorar faria sentido naquele momento. Ela precisava acreditar que tudo era uma questão de tempo e nenhuma variável a mais podia lhe macular a apatia da surpresa e do choque.

“A dor não vai passar, você só pode escolher sofrer ou não com ela”

Estas palavras dançaram ao redor dos pensamentos de Madrugada durante toda a manhã. Seu corpo cansado e gripado suava intensamente sob um Sol que despontou sem misericórdia tão logo Madrugada iniciou sua rotina. Quase se sentiu desmaiar tantas vezes que temeu apagar no meio da rua e simplesmente deixar de existir, sem mais nem menos. Demoraria um dia ou dois até que descobrissem que ela estava desaparecida, talvez até mais. Mas era justamente este tipo de pensamento que não podia vir ao caso. Qualquer brecha para perturbação ou fantasia era espaço demais, o tempo tinha de agir sozinho como já fizera tantas vezes. O tempo e o antidepressivo, e então ela poderia se curar. Madrugada não queria mais sentir dor. Na verdade, não queria mais sentir nada. Um vazio profundo ocupava seus pensamentos e lhe atrapalhou de seguir um dia normal. “Não que qualquer dia tenha sido normal nos últimos 25 anos”. Se era exagero, já nem interessava. Tudo que interessava é que o tempo agisse por si próprio e que ela estancasse seus fantasmas e permanecesse sem perturbação.

Com o corpo e as roupas encharcados, Madrugada perdeu-se em devaneios dentro do ônibus e se permitiu observar como o mundo permanece o mesmo não importa se estamos bem ou não, se estamos com raiva, felizes demais ou doentes. As pessoas continuam traçando seus caminhos pelos labirintos da cidade, o tom é sempre o mesmo: um fluxo indeterminado e indistinto de vida e nada mais. Se cada pessoa fosse tão importante quanto receia não ser, talvez a vida fosse impossível. “É natural que as pessoas morram e sejam esquecidas. Se não fosse natural, estaríamos perdidos. É natural que a vida continue mesmo sem você e que ninguém de fato se importe, talvez alguns, mas não é assim para todo mundo”. Madrugada refletiu que muitas pessoas seriam afetadas pela sua morte e isto foi uma espécie de consolo. Ela já não pensava muito em morrer, mas se morresse, sabia que o mundo continuaria sem ela e que isso faria diferença na medida certa e humana. Morrer é humano demais. Mas talvez não pudesse ser tão simples assim.

Observou os velhos passeando com minúsculos cachorros brancos às 7h20 da manhã, taxistas debruçados sobre os volantes de seus carros de vidros embaçados, crianças pequenas de tule cor-de-rosa e rabo de cavalo, o funcionário do supermercado ouvindo música nos fones de ouvido, inúmeras pombas sacolejando estupidamente na porcaria, as mesmas pessoas de sempre no ônibus. Vidas que esbarram na dela todos os dias sem pedir passagem, gente que Madrugada vê com mais frequência que a própria mãe, mas de quem sabe tão pouco. Migalhas de existência fazendo seus caminhos batidos desde cedo na cidade. Árvores de galhos nus, lixo, folhas secas, o azul derradeiro do céu de novembro, o suor lavando a cara de quem talvez nem acordou ainda. Ônibus vagando, carros vagando, motos vagando, veios asfaltados por onde corre o fluxo de vida na cidade. Complexos idênticos de prédios que guardam seres funcionais, células que ocupam seu lugar de direito e outras que apenas sobrevivem sem ter encontrado o seu. O organismo vivo da cidade é latente e travestido de objeto inanimado. Há que saber que por trás de cada peito resfolegado, por trás de cada olho remelado e mão calejada existe uma massa pulsante, disforme e fétida de carne e sangue e secreções e ácidos. E sangue. Sete pessoas remando no lago, o batom vermelho de uma moça quase bonita, a corrente de ar quando a porta do ônibus abre. Percepções que pertencem, por ora, somente ao que Madrugada e todos os outros vivem agora. Frações de tempo pequenas demais para serem consideradas presente. “O presente é mais que isso”, ela pensou fechando os olhos por um instante para deixar a mente respirar. Um recorte verde rompeu os veios fluentes com uma quietude sepulcral. “Talvez todos nós sejamos mesmo esquecidos, todos deixados para trás, valemos pouco mais que cadáveres palmos abaixo do chão que pisamos. Somos cadáveres, sim, disfarçamos nossa falta de propósito com funções causa sui. No todo, nossa finalidade é despropositada. Estamos porque estamos, somos porque somos. Estamos porque somos. Somos presenteados ou amaldiçoados pelo acaso da aleatoriedade e mesmo assim pensamos ser capazes de justiça. Toda a vida é na realidade um ensaio do que faríamos se fôssemos diferentes. Um ensaio medíocre de uma peça falha. Sou viva, saudável, jovem, e sendo assim, sou uma menina de sorte. Tenho todo o tempo do mundo para fazer esta peça real até que aconteça o que sempre acontece – a vida – e eu já não possa mais realizar o que costumava ser a razão primeira de minha existência: o destino”.

Madrugada conseguiu acalmar o espírito com um gole de água e a lembrança de que o tempo estava ali para ajudá-la. Deixou que algumas lágrimas rolassem pelas suas bochechas e tentou afastar os pensamentos ruins como se espanta um cheiro fétido. Encarou o mundo ao descer no ponto de ônibus e se tocar que não poderia realizar seu trabalho naquele humor. Era arriscado demais.

2 thoughts on “De Madrugada

  1. Os pedaços de gente que se aproximam cotidianamente no ônibus, na rua, sem contar história nenhuma à Madrugada, remetem-me a uma angústia relatada por alguns poetas (Cesário Verde, Pessoa, Drummond) com o advento e progressão da modernidade, da urbanização. “O bonde passa cheio de pernas/ Pra que tanta perna, meu Deus?”. Parece que esta angústia não passou, aliás, continua sendo produzida, continua progredindo com a proximidade cada vez maior de almas distantes. As pessoas recortadas, passando, “eu vejo tudo enquadrado”, recortes nos ônibus, na tela, nas janelas, nos vãos que nos restam entre as paredes, entre as multidões e da velocidade… Fragmentos de vida que não nos contam história nenhuma e que nos treinam a considerá-las assim, apenas imagens passageiras, quando muito íntegras, que nos desenvolvem uma indiferença necessária. Seria esta sensação de que as relações se banalizaram e… Haja entusiasmo para regurgitar “bons-dias”! Lembro da comunicação nos bondes, evoluindo para as casas, algo bastante comum nos romances do século XIX… Diria: “Que saudade do que não vivi!”? Não diria! Na verdade, não me deixo seduzir, embora… “Eu ando pelo mundo. E os meus amigos, cadê?” Enfim, empatia, Manuela!

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